sábado, 28 de dezembro de 2019

Crônicas no olhar - Aleluias ou siriris?

Aleluias ou siriris?


Quando o calor chega, liberam-se as aleluias.
Curioso o mundo das aleluias: são expulsas dos seus casebres pelo calor, vestidas em asas transparentes e corpetes de mulatas. Afora a certeza da busca por novos lares, voam sem orientação em busca de um clarão, uma luz e depois morrem "desaladas", cansadas pelo balé circular.
É lindo e cruel.
Rapaz 1 é barbudinho, tem alargador pequeno na orelha, é vivaz, tem uma voz baixa e doce e óculos dourados.
Rapaz 2 é moreno, bonito, cabelos raspados, voz baixa e serena.
Ambos conversam sentados atrás de mim no ônibus parcialmente cheio.
Rapaz 2 - Eu trampo nisso aí. Eu faço estrutura de rede.
Rapaz 1 - Ai que gostoso.
Rapaz 2 - Toda estrutura de rede da empresa eu que fiz. Semana passada mesmo, fiquei inteira em Campinas.
Rapaz 1 - Ai que gostoso!
Rapaz 2 - Gostoso nada, 3 horas para ir e 3 para voltar. Se pagassem hospedagem...
Rapaz 1 - A empresa não paga?
Rapaz 2 - Não. Fui de ônibus.
Rapaz 1 - Ai, que gostoso.
Rapaz 2 - Se fosse quando quebrei o pé, ia ser foda.
Rapaz 1 - Quebrou no skate?
Rapaz 2 - Foi. Mas foi bom.
Rapaz 1 - Bom?
Rapaz 2 - É! Melhor quebrar o pé do que o ligamento.
Rapaz 1 - Aí você recebeu pela Caixa?
Rapaz 2 - Sim, só com os pés para o alto.
Rapaz 1 - Aiiiii, que "gostosuu". E o valor?
Nesse momento chegamos ao terminal de metrô onde muitos desembarcam. Desci sem ouvir o final da conversa. Os rapazes desceram também, tinham a mesma estatura.
No caminho da baldeação, fiquei pensando o quanto somos aleluias, muitas vezes saímos dos nossos casebres à procura de uma luz. Perdemos as asas ou voltamos mortos? Ou no mulato corpo batalhando para novas asas? Passa uma senhorinha falando alto ao celular que pegou o uber como se fosse um prêmio.
Já no vagão do metrô, começo a escutar as mesmas vozes, de novo.
Rapaz 1 - Eu sou horista lá na escola onde trabalho. Me pagam pelo tempo que estou lá.
Rapaz 2 - Você tá dando aulas?
Rapaz 1 - Faço de tudo.
Rapaz 2 - Ai que gostoso.
"A ordem das árvores não altera o passarinho", relembrei Tulipa Ruiz.
Mas, para as aleluias, o passarinho altera o seu verão.
E eu sigo adiante...
Ai que gostoso!

Nenhum comentário:

Postar um comentário