teatro
Dissecando o quesito talento do ator, fico a pensar se o dom, o chamado talento nato, é mesmo o item mais importante na receita para se fazer um herói do palco.
Sim, sem dúvida alguma, o tal talento que veio do berço mastigado com grandes pingos de sorte é um diferencial. Porém, essa receita pode queimar se lhe faltar humanidade. Sim, porque esta – a humanidade – ela não vem no gene, vem com a vida e a vivência. “A unanimidade é burra”, já dizia Nelson Rodrigues.
Eu já me deparei com atores muito talentosos e capazes de se sair bem com muitas incitações, e outros nem tanto. Sou porém fã número um do ator por vocação, muito mais do que do ator recheado de talento.
Sei que a prática instiga quem tá a fim de ser ator, de se tornar um, e ela colabora para uma infinidade de questões disciplinares. Muito mais comum ver um ator por vocação que estuda mais, que chega no horário, que não falta no ensaio por pequena coisa, que sorri mais, que respeita mais o amigo, o processo, o que diz o diretor, ouve a técnica, tem o espírito mais próximo do Ser Ator. Eu já vi poucas e (não tão) boas práticas de atores “estrelas”. Exige isso, aquilo; chega atrasado ou em cima da hora porque não quer conversar com ninguém, reclama que o outro ator não está “conseguindo”, quer justificar sempre os seus erros, se acha sempre bom e atropela as unidades de processo por que sempre se acha o “Senhor dos Anéis”.
Por essas e outras, me delicio com ator por vocação, que aprende o fazer teatral se jogando no ringue, experimentando, errando, chorando, entrando em parafuso. Esse me encanta muito mais. Ator dotado de dom natural e que não sabe respeitar processo me dá preguiça mental.

Me delicio com o ator que aprende
se jogando no ringue, errando,
chorando, entrando em parafuso

Ah, e sempre isso fica muito visível no palco. Certa vez fui assistir a um espetáculo de um amigo e tinha uma atriz-bailarina-dançarina-sei-lá-o-quê em cena que parecia um ego à frente do espetáculo. Era de um incômodo! Botou o espetáculo para baixo porque estava over ego!
Fui perguntar para ele sobre essa minha observação e ele me disse que ela nunca respeitava o que o diretor – seu amigo – lhe dizia, e que ela opinava sobre tudo. Era uma Fênix ressurgida do próprio umbigo. Ou seja, se achava a atriz que levaria o espetáculo nas costas e assumiu essa responsabilidade boba. Por isso, é muito importante a mão do diretor quando se constata esses excessos. Amigo ou não, tem que ser dito. O espetáculo agradece e o público também.
Já trabalhei com atores que modificam as regras no dia do espetáculo, como se aquilo fosse legal. Não é um jogo de improviso que é válido, é surpreender para foder o outro em cena. Acho péssimo e, se eu estiver dirigindo, pego no pé mesmo e não aceito.
A melhor saída é mesmo saber o seu papel no processo. Usar e abusar dos seus cinco sentidos, aguçar a intuição, estudar e jogar com o elenco. Construa seu personagem pelo processo, não pelo seu umbigo. Daí, no fundo, com dom natural ou talento por vocação, o resultado vai ser de coração. Vai ser verdadeiro.
Outro dia assisti a um espetáculo, resultado de alunos de uma turma de circo. Era tão gratificante ver esses atores por vocação, administrando seus números em concordância com o tema proposto, com os parceiros de palco, com o público presente, com suas facilidades e dificuldades que aquilo tudo me encantou. Fui cumprimentar meus amigos que dirigiam o espetáculo e que com sabedoria se colocaram em cena, como um suporte à arte dos futuros artistas. “Com certeza muitos daqueles atores-alunos já são artistas hoje”.
Aplaudi de pé! E fui embora feliz!
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…”.

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Um livro para ler

Jogos Para Atores e não Atores – Uma série de exercícios e jogos, onde Augusto Boal aprofunda os termos do Teatro do Oprimido, em que o espectador é instigado a interagir com os atores no palco.