segunda-feira, 1 de junho de 2020

Crônicas do cotidiano - Galinha choca

Galinha choca
Uma das características de um tempo úmido, desses típicos de Outono é aquele ventinho que se transforma em ventania, que diminui e traz uma brisa fria. Friazinha!
Em tempos de distanciamento social causado por uma doença causada por um vírus que surgiu em algum lugar, dirijo nessa tarde observando o nada vazio das ruas, avenidas, ruelas e postos de gasolina e enxergo, como um cenário de filme iraniano, um garoto. Menino mesmo, uns oito ou nove anos, branco, cabelos pretos, vestindo bermuda e camiseta que não lembro a cor e nem se calçado tinha. Mas tinha um sorriso de criança feliz. Pensei em como a felicidade é uma vírgula necessária. Em uma das mãos uma latinha com linha enrolada e na outra a linha que segurava uma sacolinha de mercado, dessas verdes que custam ao consumidor oito centavos. A sacola dançava ao movimento de Pina Bausch, impulsionada por um puxa puxa de dedos infantis. No rádio tocava Sigur Rós. Uma trilha sonora que viajava e que, sei lá qual causa, me fez chegar aos meus oito anos.
Quando eu tinha essa idade, eu me encantava, com olhos bem virginianos e lacrimejantes, com uma espécie de balão caseiro feito de jornal amassado. Os meninos da Rua Paulo, outra memória incrustada na literatura da memória , que não tinha nada de Paulo, mas de um general que nem sei direito quem era, um certo Gastão Goulart, construíam esse balão encantador que chamávamos de "galinha choca". E a galinha queimava e subia com uma leveza zeppeliniana, em níveis de leveza sublime que, comparavelmente, me remeteu ao saquinho empinado pelo garoto maroto e lá no alto, queimava e uma espécie de peso de jornal desabava como uma pedra incandescente em direção ao solo. Nós, os meninos, corríamos para fazer a próxima galinha choca e assim iam várias folhas amassadas na arte criada, até cansar. Era encantador assim como o saquinho devia ser para o menino.
Eu sei que o vento, muito mais que os meninos, diverte-se mais com essas brincadeiras e deve sorrir gigantemente quando vê os dentes contentes da garotada que cresce deixando para trás a inocência de linhas e carretéis.
Sobe galinha choca, sobe sacolinha cara.Faz o vento brincar também.
Pelo retrovisor, vejo o menino sumindo ante o tempo cinza e o Sigur Rós cessando ao meu ouvido.

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