segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Crônicas do cotidiano - Pisantes

Era final de tarde. Dessas tardes gostosas que carregam consigo o calor de vidas bem entrosadas. Junto com esse ar bafônico na nuca, Pedro voltava do "rolê".
Pensamento absorto, skate debaixo do braço, tênis semi-novos desenhados nos pés tamanho 40, um boné virado assim quase de lado escondendo o suor do cabelo acumulado nas manobras e nos tombos.


Desceu do "busão" com afinco sem antes perceber a senhorinha cheio de sacolinhas de mercado amarradas entre si no banco solitário lá perto do motorista, um homem loiro de carão vermelho, sofrendo com o motor bufando de quente. Lá atrás, quase no último banco dois homens com cara de culpa escondiam uma paquera sob o fim da tarde.
Pedro pisou no skate com seu tênis orgulhoso de estar ali naquele pé. Reluzia! Reluzia também a alegria do jovem esportista, estudante de psicologia, envolvido em causas públicas e amando, amando, amando... 

A tardezinha dançava nas cores da silhueta entre o dia e a noite. Quase um Munch.


A sensação de liberdade invadiu Pedro e o fez não perceber a aproximação de Cleber, que caminhava em passos largos e olhos assustados e uma vontade aguda por um desavisado momentâneo. Dificultando seu serelepe andar, uma sandália de borracha surrada e com um prego horizontal em contato com o chão e segurando a correia.


"Perdeu Playboy!, disse.
O Munch deu vazão à realidade.
Pedro não entendeu direito.
"Vamos Mano, quero seu tênis!"
_Peraí, o tênis não. Tenho um celular aqui - Pedro tentou barganhar.
"Esse celular aí? Ninguém usa mais. Se ainda fosse um S10. Tira logo Mano!" - e mostrou um cabo de arma.
_Mas eu vou voltar descalço pra casa?
"Toma, leva meu chinelo."
E foi tomando o tênis do skatista e colocando em seus sujos pés.
"Me dá cá esse skate."
_ Pô, deixa o skate.

Cleber arranca o skate e o lança longe na grama da Praça, numa espécie de barranco. Vai pegar. Perdeu Perseu! Vai!

Pedro, sem olhar pra trás, se arrisca a buscar seu parceiro de "rolê", com os pés descalços, já que até as meias Cleber se interessou. Ele desce pela grama e volta carregando o skate a tempo de ver seus tênis reluzindo lá longe nos pés ligeiros do ladrão.

Pedro senta-se, observa seus pés, escurece a tarde; enfia seus dedos na sandália de borracha e segue adiante.

Não lamenta, mas sente.

E vai. Caminhando sem lenço, sem documento e sem ter que pisar no chão.

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